O objeto-primário na construção do eu
Luiz César Cazarim / Consultor Técnico do IBPC
Estávamos reunidos na cozinha, onde eu, de forma pretensiosa, tentava preparar um almoço supimpa. Era um sábado de verão. O dia estava ensolarado e quente. Todos tomavam alguma coisa enquanto a água fervia para preparar a massa. Alguns tomavam cerveja, como eu; as mulheres preferiram o vinho. Um grupo de amigos rindo e se divertindo em volta do fogo. A conversa girava em torno da gastronomia. Alguns lembraram do cheirinho gostoso do jantar, ao final da tarde, que invadia a casa em suas infâncias. Uma das mulheres começou a dizer do quanto não gostava da comida da mãe, e do quanto ela a irritava. Ela estava precisando falar e o tom era de ressentimento. Então eu fiz um comentário intrometido, do qual não me lembro mais exatamente. Ela, imediatamente, retrucou: “Nossa! Pra vocês, psicanalistas, tudo é a mãe?”. Lembro-me que então eu lhe disse: “Desculpe, mas não somos nós que dizemos isso, é você que não pára de falar da sua mãe!”. Ela calou-se e, depois de alguns segundos, todos caímos na rizada. O assunto mudou. A água ferveu. O molho já estava pronto. Coloquei a massa na água e em poucos minutos estávamos saboreando um delicioso almoço.
Ocorreu-me contar aqui esse episódio, ao dar asas às minhas reflexões para escrever este texto. Todos já fomos, um dia, bebês. Winnicott nos diz algo, que não paramos para pensar de tão óbvio: que não existe um bebê sem uma mãe, assim como não existe uma mãe sem um bebê. Na verdade, durante a gestação e por um período de alguns meses após o nascimento, a mãe e o bebê parecem ser uma única pessoa; um está mergulhado no outro; podemos dizer que, realmente, eles são uma única pessoa. O bebê, até os seis meses de idade, “é” os objetos com os quais se relaciona. Ele é o próprio seio da mãe.
Ao nascer, a criança traz consigo, de forma inata, como um conhecimento inconsciente, uma herança filogenética da existência de um “objeto de bondade”; um objeto mítico portador do Bem Supremo. No seu primeiro contato com a mãe, o bebê irá fundir esse conhecimento inconsciente inato com a experiência de gratificação trazida pelo seio materno. Irá então perceber, em fantasia inconsciente, um “seio mítico” pleno de bondade, portador do alívio da angústia. Mas o seio não estará sempre presente e, então, na ausência do seio, o bebê sentirá que não pode ter a gratificação plena e o gozo total e, através de uma fantasia alucinatória de satisfação, sente uma profunda nostalgia do “objeto de bondade” mítico, o qual poderia lhe proporcionar isso. Esta fantasia alucinatória de satisfação, porém, não irá se confirmar no somático. Ativada pela memória filogenética de um antecedente de gozo perdido para sempre – e sempre procurado -, sentido como angústia profunda, a fantasia irá criar um “objeto mau” no mundo interno do bebê, o “seio mau”, que é a representação da ausência do “seio bom” que gratifica e protege.
Assim, a mãe, portadora do seio mítico, é, a um só tempo, aquela que satisfaz pela presença e aquela que excita e frustra pela ausência; aquela que aplaca e aquela que produz a tensão. Uma mãe necessária e “suficientemente boa” para o crescimento mental do bebê. O desequilíbrio neste processo poderá dar surgimento a diversos tipos de sofrimento psíquico.
A concepção do bebê não é o resultado da relação sexual intima do casal parental; a concepção do bebê começa com o desejo da mulher ser mãe (desejo este, compartilhado, por vezes, pelo homem que deseja ser pai), começa em sua mente como conteúdo de sua subjetividade. Na mente da futura mãe, o bebê já tem forma; é loiro ou moreno, perfeito, saudável, é lindo! Na maioria das vezes, já possui até mesmo um nome antes de nascer, antes de ser. Ele foi desejado e é esperado com ansiedade. No período intrauterino, ele sente o pulsar das batidas do coração de sua mãe, ele experimenta o ritmo de sua respiração e associa ambos com o ritmo das batidas de seu próprio coração; ele ouve a voz materna; sente os balanços do caminhar de sua mãe. O nascimento é a separação, é a morte. A vida é reencontrada no seio, na voz, no olhar, na pele, no cheiro, no abraço protetor e criador. A partir de agora, tudo que se experimenta vem dela. Se ela não está presente, volta a terrível sensação de não existência. Contudo, um dia, ela vai precisar ser desnecessária para que o indivíduo possa existir.
Durante essas reflexões, voltei a procurar um livro que havia lido em minha juventude. O nome do livro é “O Menino”, de João Uchôa Cavalcanti Netto. Nesse livro ele escreveu uma crônica que convido que releiam comigo:
Nasceu, o menino. E sentiu assim a única existência justificável, a impossível existência do nada. Mais absurdo que ressuscitar, o nada produzir, mas o menino nasceu, perdão. Ouvir, cheirar, respirar: dor, tudo. E cada dor vivendo só, de cada vez, e, cada dor, eterna, pois ignora que passará. O menino é cada dor, inteiro, de cada vez: não sabe que as dores se ligam. Apego ao que ameniza a dor, apego ao seio. E no momento do apego, o menino é o apego. E o menino é o seio. Tudo, para o menino, é ele próprio. Descobriu: as dores pertencem: e essa consciência elementar recolhe e unifica as dores dispersas. Ouvir, cheirar, respirar, defecar são agora um rio que flui, continuado. Até que, num salto, a consciência separa: constata objetos: a solidão rompida. Mas tudo eterno, ainda. Foi o seio. Vinha, precedido sempre de acontecimentos idênticos, vinha previsível, e, criando a previsão, fez desabrochar a espera, e o tempo emergiu no menino. Percebeu, o menino, coisas que dispunham (mãos alheias) e que eram semelhantes a ele, conscientes. Aí, a mais sublime revelação: a inteligência no outro. Comunicação entre ele e aquelas mãos. A salvação: entender. E as percepções reduzindo (será que para um dia suprimir?) mais solidão. O menino sente a inferioridade. Há respostas, lá fora dele, intransponíveis. Afã de superá-las. E o menino descobre o corpo, e a relação, pelas dores, entre ele e o corpo, e, aí, ganha um corpo, e logo quer vencer o corpo. Então uma individualidade estranha se impõe. Dores anunciam-lhe as chegadas. O menino procura descobrir os prelúdios da aproximação, e evolui: um som, um cheiro, mas, quase sempre, ainda, uma dor, anunciando. Aquela individualidade paira sobre tudo: e agora só nela o menino verdadeiramente se encontra. Aquele Ser o completa e apaga num instante todas as dores. E nasce o medo (de perder), o desejo (de receber), o amor (se integrar, se identificar), o ódio (pela ausência), a culpa (sim, pois odiou), todos os sentimentos se endereçam àquele Ser indispensável, poderoso. O primeiro deus.
Portanto, somente a partir do “primeiro deus” nos lançamos para fazer nossos próprios milagres. Às vezes enfraquecidos, queremos reencontrar aquele deus. Percebemos que ele está lá, em algum lugar (no interior de nosso aparato psíquico), mas agora nós precisamos fazer nossos próprios milagres. Aquele deus tornou-se necessariamente desnecessário no mundo externo, precisa tornar-se, mas, na realidade interna, continuará a existir e estará inscrito como o primeiro deus, amado e, por vezes, odiado.Psicanalista