Clínica psicanalítica, um encontro criativo
Luiz César Cazarim / Consultor Técnico do IBPC
Quando me preparo para escrever, muitos pensamentos assomam à minha mente. Não poderia ser de outra forma. Para quem eu iria escrever? Quem iria me ler? O que eu deveria dizer que realmente fosse importante?
De forma que, antes mesmo de começar a escrever, antes mesmo de escolher o assunto, já estou encontrando-me com o leitor. De repente me parece que irei escrever para mim mesmo; irei ter um encontro com minhas próprias palavras e, sendo assim, eu acabarei por ser meu próprio leitor e não apenas o autor. E se eu já estiver “lendo” o que eu ainda nem mesmo escrevi, então, quem está “falando” com quem, o autor com o leitor, ou o leitor com o autor?
Jorge Luís Borges, referindo-se a um conto seu – “O Outro” – disse ter sido uma narrativa relacionada com o “velho tema do duplo”. Nesse conto, ele relata um encontro consigo mesmo e confessa: “Esta aparição espectral terá procedido dos espelhos de metal ou de água, ou simplesmente da memória, que faz de cada um deles um espectador e um autor. Meu dever era conseguir que os interlocutores fossem suficientemente diferentes para serem dois e suficientemente parecidos para serem um.” O que Jorge Luís borges tinha para escrever era parte dele mesmo e ele sabia que o que tinha para relatar, por ser tão pessoal, poderia não ser sentido verdadeiramente pelo leitor; caso isto acontecesse, a narrativa estaria perdida, desapareceria a verdade nela contida.
A esta altura, me convenci de que não importa o assunto, não importa o que eu tenha a dizer. O que realmente importa é que cada leitor, seja quem for, recriará minhas palavras ao lê-las, tornando-se assim um coautor do texto. E é a possibilidade desta “recriação” que dará sentido às palavras, que dará sentido à narrativa, que fará com que o que eu tenha a dizer seja algo verdadeiro. É neste espaço onde se encontra a verdade e de onde ela pode emergir, neste espaço criado por duas pessoas. Mesmo na ficção a verdade se oculta; mesmo na singularidade livre da poesia; mas a verdade do poeta só existirá se for percebida pela leitura atenta e envolvente do leitor, caso contrário, ela permanecerá no silêncio. A verdade precisa corresponder à experiência emocional vivida. Como diz Thomas Ogden: “…não importa quem articula algo que é verdadeiro – o que importa é que um pensamento que é verdadeiro ‘encontrou’ um pensador que o tornou disponível..”.
Sim, é confuso. É confuso porque, como diz Michel Foucault, estamos diante de um terreno incômodo e sabendo que, para percorrê-lo, é preciso renunciar ao conforto das verdades terminais. Estamos nos aventurando em uma região onde a razão e a desrazão se encontram, e é nesta região que se encontra a verdade; justamente na região do espaço vazio, porém povoado de todas as palavras sem linguagem que falam sozinhas sem falante e sem interlocutor. Assim, descobrimos que precisamos renunciar à onipotência e à onisciência da magia infantil; precisamos aceitar que não podemos alcançar a verdade como arautos da razão. Eu me pergunto – como vocês podem estar se perguntando: A desrazão então deve ser entendida como uma patologia da razão? Ou seria ela uma representação do esforço da busca do sentido, da busca da verdade? Poderia a razão estar à serviço de evitar o desconforto provocado pela desrazão? Poderíamos alcançar a verdade apenas pelos caminhos da razão?
Não importa se existem respostas – elas seriam produtos da própria razão – importa fazermos as perguntas e suportarmos o estado de não-saber. Diz Gaston Bachelard, citado por Ignácio Gerber: “Não existe uma idéia simples, porque uma idéia simples deve estar inserida, para ser compreendida, num sistema complexo de pensamentos e experiências”.
Quem lerá este texto? E qual verdade surgirá desta leitura? Certamente, isto dependerá se a experiência emocional vivida por cada um será capaz de mobilizar, nesse encontro, um processo criativo.
Estamos todos, em todo o tipo de relações e nos encontros que as constituem, constantemente, sob a exigência de acreditar e compreender o que nos é “dito” – seja em palavras, olhares, gestos ou expressões. Se nos importarmos, saberemos que aquele que nos fala espera ser escutado, espera ser percebido, espera ser compreendido para ser acreditado, pois só assim sentirá que existe, só assim sentirá que “É”. E isto faz toda a diferença. Seja qual for a relação entre duas pessoas, quando um “escuta” o outro, também “escuta” a si mesmo em um processo de ressonância com suas próprias experiências; e a qualidade desse encontro determinará a qualidade do resultado.
Percebo agora que estou escrevendo sobre a clínica psicanalítica, sobre o fazer psicanalítico, sobre o encontro do psicanalista com o seu paciente, sobre o crescimento de ambos nesse encontro criativo.
Termino assim (abruptamente, talvez) minhas divagações neste texto, o qual só existirá ao ser percebido, ao ser lido, cotejado e recriado. Espero não termos sido tão diferentes neste encontro que o encontro não possa ter existido; e nem tão parecidos que tenhamos nos anulado mutuamente, impedindo a possibilidade da criação de algo novo. Espero que o conteúdo desta nossa rápida “conversa” não se esgote aqui em minhas palavras apressadas, mas continue se expandindo no contato com vocês que agora terminam de lê-las.