O humano além dos limites de uma ciência restritiva

Luiz César Cazarim / Consultor Técnico do IBPC


Assisti um dia desses, em um noticiário, uma matéria relacionada a uma experiência científica, em uma universidade dos EUA, na qual chegou-se a um resultado: moscas machos que não tenham tido sucesso na abordagem reprodutiva com moscas fêmeas buscam alimentos com álcool e as que conseguiram o cruzamento buscam alimentos sem álcool. A pesquisadora concluiu que a experiência pode ajudar a compreender a dependência química nos seres humanos. Confesso que fiquei atônito. Não somos mais semelhantes apenas a ratinhos e chipanzés, mas também a moscas. Vivemos a era do “centramento no soma”, existência em um “corpo” que não possui significação.

É claro que é verdade que os avanços tecnológicos e científicos e os novos conhecimentos que vêm sendo adquiridos têm sido de enorme utilidade para a melhoria da vida humana. Mas, a forma que os resultados são veiculados pela mídia os envolve numa certa aura de “panacéia”. Parece que o homem está sendo visto apenas pelo prisma das ciências naturais, da psicologia evolutiva e experimental, com a noção de que o desenvolvimento humano é resultado e guiado por mecanismos bioquímicos e comportamentais. Acredito que não é nem mesmo necessário dizer que o ser humano é de longe muito mais complexo que roedores, primatas e insetos. Não creio ser possível traçar uma similaridade entre eles. Vou me concentrar, portanto, apenas nos humanos.

Ramos da ciência como a bioquímica, a genética e a neurociência (com a recente neuroimagem) têm aberto enormes possibilidades para compreender e amenizar o sofrimento humano. Suas pesquisas têm permitido um melhor entendimento dos processos moleculares e neurocerebrais, por exemplo. Mas, muitas incertezas também persistem. Como os psicanalistas costumam dizer: a certeza só é encontrada no delírio. Muitos acreditam que as proposições dos ramos da ciência acima apresentados não são suficientes para explicar e tratar o sofrimento psíquico e emocional.

Tomemos um fenômeno de nosso tempo – o estresse – embora, desde o final do século passado já fosse conhecido pelo nome de “neurastenia”. Hoje, ele vem sendo associado a diversos quadros mórbidos como o aumento de colesterol, a elevação da pressão-arterial, o aumento da vulnerabilidade ao diabetes, o favorecimento de distúrbios digestivos e alimentares, desregulações metabólicas e hormonais diversas, processos alérgicos, etc. Sabe-se que o estresse é o fator desencadeante do que poderíamos chamar de doenças da pós-modernidade. No entanto, pouco a ciência sabe a seu respeito. O estresse contemporâneo libera um tipo de energia que não encontra um alvo físico específico. Ela é desencadeada sem objetivo visível, a ameaça e o perigo não são externos, não são reais. Além disso, não há uma escala objetiva para medir a intensidade do estresse, somente os efeitos que ele provoca. Sabe-se que quando a tensão decorre de sensações subjetivas duradouras, de impotência e dependência, por exemplo, a prática de exercícios físicos, a alimentação saudável e as atividades de lazer surtem menos efeitos do que poderiam ter. Na tentativa de entender tal quadro, estima-se que um terço das diferentes reações ao estresse é condicionado a fatores genéticos, mas apenas a herança genética é insuficiente para prever o comportamento humano. Sabe-se também que o que colabora para a sensibilidade ao estresse são as experiências emocionais vividas na primeira infância. O que quero dizer é que o estresse é uma sensação subjetiva sujeita a uma determinada percepção do ambiente.

Com a epigenética, a própria ciência já colocou em xeque o determinismo genético. Sabe-se que o genoma pode ser programado como resposta adaptativa ao ambiente, inclusive aquele constituído pela vida intrauterina. Pesquisas têm demostrado que o que se chama de “padrão de metilação do DNA” pode ser alterado por fatores relacionados aos cuidados maternos, os quais também são influenciados pelas vivências ao estresse da mãe, durante a gestação.

Não posso deixar de mencionar aqui que a ciência também descobriu que está longe de possuir um catálogo completo dos processos cerebrais. Os especialistas estimam que neles a consciência ocupa no máximo 5% do cérebro, o restante está associado ao que se conhece por inconsciente. Creio que esse inconsciente descoberto pela neurociência, por ser considerado domável e educável, como uma espécie de consciente, não é o mesmo inconsciente ao qual se refere a psicanálise.

Liana Albernaz de Melo Bastos – Psicanalista; Doutora em Ciências Humanas e da saúde e Professora da Faculdade de Medicina UFRJ diz que “a psicanálise, ao não operar o divórcio corpo-mente, com a noção de corpo-sujeito, aponta para o fato de que o corpo biológico não existe de forma autônoma. Sua bagagem genômica não é um destino inexorável como pretende um certo viés reducionista. Ela é uma probabilidade, mais ou menos forte, afetada pelo contexto sócio-histórico-cultural no qual o sujeito se constitui. A rede constitutiva do sujeito não é um “ao lado” do corpo biológico. Ela produz sentidos e mudanças. Não se trata, assim, de privilegiar o aspecto biológico sobre o psíquico – ou vice-versa – mas de entendermos que, em certos momentos, pode haver a apresentação predominante de um sobre outro sem excluir aquele silenciado.”

Portanto, critérios positivistas, reducionistas e estatísticos apenas, com a supressão da referência subjetiva e do campo das significações, não alcançam a complexidade humana e não são suficientes, embora necessários, para a melhoria da qualidade de vida. Os conflitos emocionais persistem. A violência cada vez mais deságua em tragédias. No mundo, o suicídio ainda é responsável por um milhão de mortes por ano.

O homem precisa se ver e precisa ser visto em toda a sua potencialidade criativa. Cada vez mais, os sintomas se mostram como expressões representativas distorcidas de conteúdos inconscientes. Frequentemente, os casos clínicos não são transparentes e não possuem uma lógica evidente. É cada vez mais necessário o auxílio da intervenção clínica psicoterapêutica, cuja abordagem esteja focada na subjetividade e singularidade do psiquismo do indivíduo. A qualidade de vida melhora à medida que o sujeito adquire o direito – muitas vezes negado pelo ambiente – de ser autêntico, de existir e de poder criar seu próprio mundo.