Psicanálise e o inconsciente como poesia
Luiz César Cazarim / Consultor Técnico do IBPC
Quem já não se surpreendeu desviando-se de um caminho antes escolhido para ser percorrido? Quem já não se surpreendeu dizendo uma palavra ou um nome em lugar de outro que tencionava dizer ou esquecendo-os, embora estivessem na ponta da língua? Quem já não sentiu emoções inexplicáveis sem saber de onde vêm? Quem já não simpatizou ou antipatizou com alguém, a primeira vista? Quem já não passou muito tempo procurando por algo após haver esquecido onde o tinha colocado, até que, de repente, esse algo “simplesmente” aparece de forma inusitada, em momento inusitado, em lugar inusitado?
Estes são lapsos comuns aos quais todas as pessoas estão sujeitas; no entanto, revelam a existência de um funcionamento enigmático da mente humana. Não estaríamos errados se disséssemos que o homem é um ser que não sabe por que pensa o que pensa, por que sente o que sente, por que fala o que fala e por que faz o que faz. Em 1901, Freud escreveu um trabalho, abordando estas ocorrências, intitulado “Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana.”
Embora Freud não tenha sido o descobridor do Inconsciente – o qual já vinha sendo objeto de estudo de outros pensadores – tornou-se reconhecido por ter sistematizado a sua compreensão, revolucionando o pensamento do século XX; tendo o conceito formulado por ele adquirido o status de pedra angular da, também por ele, recém-criada Psicanálise.
A Psicanálise concebe o inconsciente segundo sua forma dinâmica, o que o diferencia do inconsciente descritivo e rígido concebido por outras disciplinas.
Dessa forma, o psicanalista considera que o sistema Inconsciente encontra-se nas profundezas da mente humana e funciona de acordo com suas próprias leis, sendo morada de: forças instintivas dinâmicas, permanentemente, em conflito; desejos pulsionais e fantasias arcaicas que nele proliferam criando uma tensão que exige descargas reveladoras. O inconsciente abriga ainda as representações criadas a partir da percepção tanto de estímulos somáticos como das experiências emocionais.
É com esse processo de simbolização que se inicia o desenvolvimento da própria mente; ou seja, daquilo que podemos entender como o aparelho capaz de pensar os pensamentos e de comunicá-los. A patologia psíquica surge quando esse processo se rompe ou se desorganiza a um nível tal que lança o indivíduo na “escuridão”. Dessa forma, cabe ao psicanalista buscar estabelecer com seu paciente uma situação que favoreça a comunicação inconsciente (intersubjetiva), a qual venha a permitir o desvelamento, para ambos, dos processos de sofrimento.
O respeitável psicanalista Wilfred Bion – no que é seguido por James Grotstein e outros – conceitua o inconsciente como um processo simbólico que gera significados e que provê o mundo externo com metáforas e imagens poéticas. Creio que Bion fala de um inconsciente poético, sim, um inconsciente de criações artísticas, um inconsciente que embeleza até mesmo a dor e o sofrimento. Inconsciente percebido pelo poeta Vinícius de Moraes quando escreveu que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza….”
Nessa interseção, onde a arte encontra a ciência, com satisfação, encontramos desse inconsciente uma bela e poética descrição feita pelo escritor e psicanalista Ruben Alves em uma de suas crônicas e que podemos apreciar no trecho a seguir:
“A alma é uma paisagem. Ou melhor, paisagens. Paisagens são feitas com campos, florestas, montanhas, rios, mares, nuvens – ‘coisas’ que existem fora de nós, que os sentidos percebem e nós lhes damos nomes. As paisagens da alma, entretanto, não são feitas de ‘coisas’. São feitas de sentimentos. E os sentimentos, não temos como dizê-los, os sentidos não conseguem fotografá-los. Então um ‘artista’ que mora dentro da gente, o tal de Inconsciente, lança mão de um artifício: ele veste os sentimentos da paisagem de dentro com as coisas da paisagem de fora. Um medo muito grande aparece como um precipício; o tédio se parece com uma chuva persistente em meio as brumas; Vingança? Um tigre; A perda de um amor? Um velório. E a experiência de liberdade? Você nunca voou nos sonhos? Dessa forma, o ‘artista’ torna visíveis as paisagens da alma por meio de metáforas. O ‘artista’ além de ser pintor é também poeta. Os sonhos são efêmeras visões das paisagens da alma, as paisagens que fazem a nossa pele do lado de dentro, o lado do coração. Quando a gente vê uma paisagem de fora e se emociona, a emoção não vem da paisagem de fora. Vem é da paisagem de dentro. Geralmente se pensa que a função dos psicanalistas é curar doenças da alma….O que acho é que eles são os guias que nos levam a visitar as paisagens da alma que nós mesmos desconhecemos. Bosques escuros, mares profundos, montanhas cobertas de neve, campos floridos, cemitérios…Essa aventura nos conduz por experiências de tristeza e beleza. E isso nos torna mais sábios. A sabedoria é uma forma de cura.”